sábado, 19 de outubro de 2013

Narcisa Acorrentada

Narcisa Acorrentada Revi a fotografia hoje e fiquei presa. O momento reproduzido teve, agora, impacto infinitamente maior. Tudo era triste nela como tristes eram as ruínas do antigo engenho onde pequena morada em taipa de mão havia sido precariamente erguida. A beleza natural da ilha, a cor mágica que o rio assumira naquele dia e que eu julgava ser apenas para mim, nada disso diminuiu a fatalidade do encontro com o seu olhar. Pronto, aconteceu! E agora? Perdi o dia, eu que alegre e otimista amanhecera? Não estava ali para fotografar pessoas em seus viveres? Merecia, por acaso, "aquela" emoção, eu que gostava de vivê-las muito mais em macios sofás e cheiro doce de flores de algodão? Mas a menina que compunha o quadro era verdadeira e trágica demais! Ela se impunha! Nunca saíra da ilha, mas tinha um olhar e o dirigia - naquele momento a mim, aos meus acompanhantes - e percebia algumas coisas nada sutis. E eram diferenças de várias ordens: cores, roupas, cabelos, gestos... Viu uma revista um dia e pensou morrer: existiam crianças claras, limpas, penteadas, risonhas. Olhou-se no caco do espelho sem prever agouros e tentou sorrir. Mas o esboço de uma careta a terrificou e ela terminou por desgostar-se. E ficou, ali, perfeitamente consciente das diferenças possíveis e finamente recolhida lá para dentro do que em si transcendia a um corpinho encardido e onde talvez se pudesse chamar de... alma? Psiquismo? Ficou lá! Diziam dela "a demente" e a esqueciam. Mas de si mesma a menina não esquecia. Quisera... Mas era imperioso sentir-se, saber-se. Era necessária a dor de existir para que houvesse existência. Pensava. Pensava? E o seu viver era o de olhar para o rio, de passar a mão suave pelo dorso do cão que também dela se arrediava, de suspirar quentes ares em bocejos ruidosos que se prolongavam terminando muitas vezes em súbitas interrupções por cascudos ou safanões. "Êta, menina suspirosa! Para de abrir essa boca, sua demente!" Um irmão e outro e outro. Nasciam, morriam e ela continuava, olhos secos, em sua demência que não era, percebendo sucessões. Houve velhos - sabia que existira velhos naquele mundo, mas sumiram, foram enterrados, alí, embaixo de umas árvores grandes. Nunca soube porque. Esqueceu-os por algum tempo, mas depois lembrou-os.  Um dia precisou mexer-se mais que tudo na vida, porque o seu corpinho parecia demente também. Então deu pequenos saltos, esticou-se para cá, para lá, acordou o cachorro que bocejou comprido como ela. Começou um riso, mas logo lembrou a imagem do espelho. Fechou-se. Passou as mãos nos cabelos. Como seriam? Como os da mãe? Nunca mais um espelho! De tudo isso eu soube por profundas intuições. Não conseguia parar de olhar para a menina que, sem medo, sem pestanejares desnecessários, olhava-me também. Vendo-me? Como saber? Fiz alguns cliques que não a espantaram - deixava-se olhar e dava-se a revelar. Demência sem hermetismo - transparente, cristalina. Foi então que comecei a amar a menina. Quis passar a mão em seus cabelos, em seu rostinho. Seria descabido um beijo? Mas ela me congelava, paralisava, mantinha-me longe. A mãe também, aos berros, gritava para os meninos: "tem que vir agora tirar o foto. E deixem o diabo do cachorro aí. Olhe que eu lhe meto o pau!" Era assim: e a menina nem chamada foi para compor o quadro daquele tipo tão peculiar de miséria. Afastou-se com o cachorro ameaçado de paulada. Tão logo fotografei, corri para junto dela que prendera os cabelos volumosos que até agora cobrira parte do seu rosto miúdo, com um lápis. Então eu vi o que ela temia! Vi a beleza de um rosto infantil, ainda longe adolescência. Vi cílios imensos e escuríssimos, sobrancelhas grossas e bem delineadas, lábios carnudos, dentes pequenos milagrosamente alvos, testa muito larga. Vi-a passado e futuro - bela! Pena o olhar triste. Quis abraça-la, mas não me senti autorizada. Chamaram-me, barco já ligado. Perguntei alto para a mãe que se distanciava recolhendo os meninos aos emboléus: como se chama essa aqui, a mais velha? Ralhou por costume: "ah, a demente? A senhora viu essa menina? Oxe! Nem ela se vê!..."  Mas nem o barulho do barco nem a distância que me separava da mulher impediram-me de ouvir: "É Narcisa, o nome dela. Nome esquisito que a parteira deu"... Olhei-a já longe, com o cachorro ao lado. Enxerguei a beleza da alma modesta, acanhada, que nunca se mostraria, nem para o espelho dágua. Amei-a pelo seu destino que não se cumpriria.  Semanas depois enviei seis das melhores fotos por um portador que me prometeu passar na ilha para entrega em mãos. Nunca voltei. Nunca saberei se ela se reconheceu - majestosa beldade. Helenita Monte de Hollanda